Foto mostra Schirlei Alves sorrindo olhando para a câmera

Caso Schirlei Alves: silenciar jornalistas é autorizar que crimes se perpetuem

A jornalista foi condenada a prisão e indenização após reportagem denunciando a humilhação que Mariana Ferrer, jovem que acusou um empresário de tê-la estuprado, sofreu durante audiência

Por Amanda Stabile

30|11|2023

Alterado em 30|11|2023

A 5ª Vara Criminal de Florianópolis (SC) condenou a jornalista Schirlei Alves a um ano de prisão e ao pagamento de R$ 400 mil em indenização pelo crime de difamação após publicar uma reportagem denunciando a humilhação que Mariana Ferrer sofreu durante audiência judicial. A jovem acusou o empresário André de Camargo Aranha de tê-la estuprado durante evento em um beach club localizado em Jurerê Internacional, Florianópolis (SC), em 2018.

A reportagem, publicada em 2020 no site The Intercept Brasil, revelou o constrangimento e a violência praticados contra Mariana durante o processo, gerando comoção nacional. Porém, ao final, André de Camargo Aranha, o empresário acusado do estupro, foi declarado inocente por falta de provas.

Em decorrência da reportagem, o promotor, o juiz e o advogado da defesa moveram três processos criminais contra a jornalista, além de três ações cíveis que pedem indenização por danos morais também envolvendo o The Intercept Brasil.

“A Defesa está inconformada com a sentença, que ignorou a realidade dos fatos e a prova dos autos, resultando em uma decisão flagrantemente arbitrária e ilegal”, expressou a defesa de Schirlei Alves em nota oficial. Os advogados também pontuaram que a sentença cometeu uma série de erros jurídicos primários, agravando artificialmente a condenação e contrariando toda a jurisprudência brasileira sobre o tema.

Incapaz de esconder preocupações corporativistas, essa sentença pode servir como uma ameaça contra aqueles que ousam denunciar os abusos eventualmente cometidos pelo Poder Judiciário,

alertou.

Charlene Nagae, advogada e diretora-executiva do Instituto Tornavoz, organização que visa garantir defesa jurídica especializada àqueles que sofrem processos devido ao exercício da manifestação do pensamento e da expressão, aponta que é inadmissível que uma jornalista enfrente tantos processos judiciais em virtude da divulgação de informações de interesse público.

“Essas ações são movidas por um magistrado, um promotor e um advogado cuja atuação em uma audiência criminal deve estar sujeita ao escrutínio público. O ajuizamento dessas ações já seria preocupante, porque significa que esses atores sequer compreendem a natureza do trabalho jornalístico e que é natural, em uma democracia, que sejam criticados por suas condutas, decisões e manifestações no processo”, alerta.

A advogada ainda defende que ao punir desse modo uma jornalista que apenas levou ao conhecimento da sociedade fatos de inequívoco interesse público, cria-se uma cultura de receio e autocensura.

Qualquer jornalista passa a repensar coberturas sobre o Poder Judiciário e isso traz efeitos não só para a esfera de direitos da própria Schirlei ou de jornalistas, mas de toda a população, que pode não ter acesso a informações relevantes.

Charlene ainda chama atenção para o fato de que, no país, qualquer profissional de comunicação (e até outros cidadãos) podem ser alvos de ações por difamação e presos. “Em diversos países já não é mais assim e há precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos, por exemplo, que indicam ser desproporcional levar uma pessoa à prisão por algo que ela disse ou escreveu no exercício da atividade jornalística”, explica.

“A sociedade pode pressionar para que haja uma mudança legislativa, mas é muito difícil que isso seja feito sem que, antes, haja uma discussão sobre a liberdade de expressão que queremos. O que deve estar protegido, por ser um princípio caro à nossa sociedade? O que não é tolerado? Não temos respostas claras para isso no Brasil”.

Omissão durante o julgamento

Na mesma semana da divulgação da sentença da jornalista Schirlei Alves, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) reconheceu as violações cometidas contra Mariana Ferrer durante a audiência e reveladas pela jornalista. O juiz Rudson Marcos, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC), foi punido com pena de advertência pela conduta.

Durante a 17ª Sessão Ordinária de 2023, onde o processo administrativo foi julgado, o ministro Luís Roberto Barroso, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do CNJ, apontou que cabe ao juiz evitar que a testemunha ou a vítima sejam constrangidas e humilhadas.

“Foi uma conduta grosseira e machista que precisava da intervenção do juiz. Não se trata de uma questão jurisdicional, e sim, administrativo-comportamental de condução da audiência. As imagens divulgadas fazem com que as vítimas de violência sexual passem a temer o Judiciário”, alertou.

Também é importante citar que, em novembro de 2021, foi sancionada a Lei 11.245, conhecida como Lei Mariana Ferrer, que protege vítimas de crimes sexuais em julgamentos e prevê punição para atos contra a dignidade de vítimas de violência sexual e das testemunhas do processo durante julgamentos.

Para a jornalista Cristina Fibe, que se dedica a cobrir casos de violência contra a mulher, a justiça brasileira, apesar de ter um protocolo que obriga os tribunais a julgar sob perspectiva de gênero, ainda tem um longo caminho para conseguir fazer isso.

Como podemos ter certeza de que as mulheres serão protegidas pela Justiça num país em que o Supremo Tribunal Federal tem apenas uma representante mulher para dez homens?

“O caso da Schirlei Alves assusta, porque além de tudo se trata de uma jornalista que deu voz a uma mulher vítima de violência institucional — o que foi reconhecido pelo próprio CNJ. Como pode uma jornalista mulher não ter garantido o direito de exercer o seu ofício? O que a Schirlei está passando também é uma violência enorme”.

Em relação ao assédio judicial contra jornalistas e à imprensa, em geral, Cris considera que é algo que só contribui para perpetuar o silenciamento que envolve os crimes contra a mulher. “Nós, jornalistas, somos uma espécie de alto-falante para amplificar as vozes das vítimas e tirar esses crimes das sombras”.

Nos silenciar é autorizar que esses crimes se perpetuem. Como jornalista e mulher, fico preocupada, intimidada e insegura.

Ato em solidariedade à Schirlei Alves

Para manifestar apoio à Schirlei Alves e denunciar o assédio judicial sofrido pela jornalista, aconteceu na manhã de hoje (30/11), um ato promovido pelo Sindicato dos Jornalistas de Santa Catarina (SJSC), no auditório do Centro de Comunicação e Expressão da Universidade Federal de Santa Catarina (CCE/UFSC).

“É incompreensível que a jornalista seja penalizada por seu trabalho, em um processo movido pelo juiz e o promotor do caso, enquanto os agentes públicos envolvidos na situação de humilhação de Mariana Ferrer não são responsabilizados”, pontua o manifesto divulgado pelo sindicato e assinado por mais de 30 entidades.

“É papel do jornalismo dar publicidade a condutas equivocadas de agentes públicos, por isso, a criminalização de Schirlei Alves é uma afronta ao direito à informação e à liberdade de imprensa. A violência de gênero presente nessa história, desde a humilhação de Mariana até a perseguição judicial à jornalista, é inaceitável e demanda uma revisão urgente na atitude da juíza Andrea”, conclui.